VENTURA E DANAÇÃO DE UM SALTA-MUROS NO TEMPO DA DITADURA

BEIRA DE RIO, CORRENTEZA - ventura e danação de um salta-muros no tempo da Ditadura - Nas boas livrarias e em www.mauad.com.br

sábado, 17 de julho de 2010

ELIESER CESAR ESCREVE

RIO QUE CORRE NA VIDA

ELIESER CESAR


Escrito em linguagem fluente como um rio – de águas cristalinas – que corre manso e desemboca na foz da vida e da experiência, Beira de Rio, Correnteza – ventura e danação de um salta-muros no tempo da ditadura, novo romance de Carlos Barbosa, baiano ribeirinho do São Francisco, é um romance de formação, o bildungsroman dos alemães. O garoto Gero, personagem central do romance, enfrenta a difícil travessia do menino para o homem, sempre banhada em águas turvas, em dúvidas e incertezas, mas inexorável como a correnteza que a tudo arrasta e leva consigo no leito caudaloso do seu próprio rio. Rio da vida, do tempo e mudanças contínuas, para o garoto que conhece a morte, o amor, a solidão e, por fim, a dor amor que deixa cicatrizes no corpo e na alma, mas que diferencia e afasta, irrevogavelmente (como o destino de um afogado), a criança do adulto.

Repleto de metáforas fluviais, Beira de Rio, Correnteza retoma a vertente ribeirinha de Carlos Barbosa, que boa pescaria deu com A Dama do Velho Chico, seu primeiro romance. A travessia sanfranciscana, psicológica e sentimental de Gero, tem como cenário a mesma cidadezinha fictícia de Carlos Barbosa, que – a exemplo de Gabriel Garcia Márquez, com Macondo, William Faulkner, com Yoknapatawpha e Juan Rulfo, com Comala, – também inventou o seu condado literário, que atende pelo poético nome de Bom Jardim da Rica Flor.

Homem da beira do rio, sem temer a correnteza desafiadora da arte, Carlos Barbosa diferencia as águas de seu movimento intempestivo:

O rio trazia vida, sempre., A correnteza levava vidas. O rio propiciava riquezas. A correnteza as destruía. O rio era o caminho., a correnteza era a perdição. O rio era abençoado, e a correnteza, proibida.

E, dialético, como as águas nas quais jamais entramos de novo (pelo menos como nos banhamos antes, já que até a respiração que sucede um mergulho já não é a mesma) avança rio acima:

Beira de rio muda sua aparência a cada ano, depois da enchente, mesmo com rígido cais de pedra a defini-la. Nem um rio nem sua margem permanecem intactos à correnteza.. Correnteza é tempo, beira de rio é matéria que o tempo arrasta e arrasta.

Verdade, absoluta, a não ser que estejamos na terceira margem do rio, do lado da fantasia que doma rios, travessias e correntezas.

UM CERTO CAPITÃO LAMARACA

Carlos Barbosa faz singrar uma correnteza impiedosa que levou a vida do craque de futebol Toninho, após uma partida eletrizante e memorável; que afogou o maluco Zé Dugogue; e quase leva o pequeno Gero; o mesmo rio incessante da vida que carregou o menino de 14 anos para o leito da experiência; esse corolário da epifania humana, já que as bestas não aprendem nem com a grama que alimenta e abarrota.

A maior e benfazeja experiência do menino é Liana, matriz generosa do processo de formação, transformação, amor e sofrimento do rapazinho que, de pressa (como as águas de uma cheia que a tudo arrasta e destrói), vira homem, depois de saltar um muro.

O primeiro amor marca sempre na carne e na alma. Foi o que aconteceu com Gero, que saltou o muro da experiência para os braços da misteriosa mulher que o inicia no jogo da sedução e do amor. Beira de Rio, Correnteza, relata, ainda que de forma transversal, uma história de covardia talvez a maior perseguição já empreendida contra dois fugitivos, numa luta desigual: o exército (e o daquele tempo, felizmente condenado ao passado, tem de ser grifado com letra minúscula da truculência) contra o Capitão Carlos Lamarca e o Guerrilheiro Zequinha.

Também a injustiça e a judiação dos milicos contra os pequenos – invasões de casa, denúncias anônimas, ameaças etc – marcam a consciência do pequeno Gero. Na região de Brotas de Macaúbas, que circunscreve a geografia literária de Carlos Barbosa, que Lamarca e Zequinha foram fuzilados, num ajuste de contas que denegriu o uniforme verde-oliva de seus carrascos.

Há uma solução de conflito que nos parece demasiadamente cinematográfica na história: a pedrada que Gero, roído de ciúme, acerta no oficial médico em companhia de Liana num jipe militar e as consequências da agressão. De qualquer maneira, convenhamos, que menino e, do interior, acostumado a caçar passarinhos, é muito bom de pontaria.

À deriva de suas novas sensações, Gero mergulha no rio, num desafio suicida e, ao mesmo tempo, num ritual de sua transformação interna, quando deixa de ser o menino assustado, tido como medroso, porém, cheio de coragem que não pode provar para ninguém - como se verá no episódio do sumiço de uma pasta comprometedora, que jamais poderia chegar ás mãos dos militares. Com Beira do Rio, Correnteza, Carlos Barbosa imprime longo percurso a um rio que corre na vida de um quase menino; com, de resto, todos nós jamais deixamos de ser: quase um menino no longevo e renovável rio da vida.


Visite o blogue de Elieser Cesar, o "Salve, Cesar",

no endereço http://eliesercesar.wordpress.com.



Nenhum comentário:

Postar um comentário